Com que direito você me fala de brisa em pleno inferno?
Não tem remorso pelo sorriso no canto da boca quando se anuncia que o número de famintos no mundo vai dobrar em apenas um ano?
O luto campeia. Vejo as ondas de medo, angústia de roer unhas, pesadelos.
Que convite é esse para me alienar num abraço?
O confinamento me roubou a alegria de voltar pra casa no fim do dia.
Mais trabalho, menos tempo. Não há dever cumprido. Qualquer tanto é pouco.
Já rezou para as vítimas hoje? Suas famílias? Contribuiu para a assistência?
Como você pode negar minha impotência e garantir que posso tanto por você?
A emergência exibiu a inutilidade dos planos, desvestiu a vaidade dos meus projetos.
Rasgou pequenos desejos. Mais um filme, um livro, uma roupa pra quê?
Fiquei nua e você se aproveitou.
Me vestiu de palavras. Fez do vínculo o único abrigo possível.
Raspei a cabeça, indócil como um skinhead. Você me viu suave como um monge.
Tranquei as portas e culpei a pandemia. Você se aliou à distância.
Garantiu que seu espaço já era muito maior do que o do corpo
Quando finalmente rompeu o isolamento, disposto a salvar um coração.
Você não se condena pela paixão em pleno caos?
Não se culpa pela chama acesa, afrontando o breu?
Não está dividido entre a poesia e a brutalidade dos dias?
Como você pode me fazer tão humanamente amar e me apartar do sentimento de toda a humanidade?
Imagem: the.rebel.bear